Anísio Teixeira
 
 
"Anísio Teixeira: Vida, Obras e Movimento"

Francisco Gilson Rebouças Pôrto Júnior
Faculdade de Educação, Universidade de Brasília

 

Introdução

Falar sobre um educador de tamanha importância não é, deveras, uma tarefa simples, mas por demais complicada. Nesta breve tentativa de resgatar uma parte da história educacional brasileira, tentarei traçar a visão deste educador que teve sempre em destaque a importância da gratuidade do ensino e de uma educação para todos, indo assim ao encontro dos ideais da Escola Nova.

Se traçarmos um breve histórico da vida deste educador, desde o seu nascimento na Bahia (em Caetité), em 12 de julho de 1900 até a sua impetuosa visão educacional e atuação firme, muito poderíamos dizer de Anísio Teixeira. Advogado de formação, segundo Hermes Lima em seu livro Anísio Teixeira Estadista da Educação, Anísio sempre esteve apegado a uma visão de educação:

"... as duas orientações metodológicas que Anísio se manteve invariavelmente fiel: não há educação sem teoria da educação, nem educação sem o diagnóstico das situações que está chamada a resolver" (p.64).

Podemos imputar a Anísio Teixeira uma grande importância no cenário educacional brasileiro: ao iniciar seus estudos pós-graduados nos Estados Unidos entra em contato com a corrente pragmatista que se desenvolvia em vários países. Os últimos anos do século XIX e os primeiros vinte anos do século XX são ricos nas visões educacionais: Dewey com seus escritos sobre Escola e Sociedade, Escola e a Criança, Democracia e educação; a criação da “Verein Für Kinderspsychologie” em Berlim (Associação para a psicologia da criança); William James com suas Palestras pedagógicas; Freud com sua Ciência dos Sonhos e Dora; Ellen Key com A Criança do Século; Kropotkin com Campos, fábricas e oficinas; a fundação da primeira Escola Moderna por Francisco Ferrer; Lay com a Didática experimental; fundação da “Maison des enfants” em Roma por Maria Montessori; fundação École de l’Hermitage por Decroly em Bruxelas e da “Landerziehungsheim” de Holf-Oberkurch por Tobler na Suíça; fundação da escola Ferrer em Lausanne; Meumann com suas Lições para a introdução a Pedagogia experimental (1911-1915); Otto com a escola do futuro na Alemanha; Claparéde e Bovet com Maison des Petits na Suíça; A escola ativa de Ferriére e o início da experiência de Freinet em Bar-sur-Loup, para apenas citarmos a riqueza deste período.

E é influenciado por estas visões emergentes que Anísio Teixeira vê a necessidade de uma teoria educacional indissociável de um saber prático. Anísio passa a assumir uma posição filosófica firmada no exemplo de John Dewey. Dewey foi um progressista social. Concebia a educação como um processo de recriação ou reconstrução do educando por meio da experimentação. Propunha a educação em e para o educando, sendo Anísio um dos precursores desta visão no meio educacional brasileiro.

Anísio passa a ter a visão de que o ambiente social é fundamental na escola e que, como a família já não educava como no passado, a instituição 'escola' deveria ter tal posição, diagnosticando e aplicando os meios curativos necessários.

Anísio também era político, apesar de não militar em partidos. Era extremamente atento as dificuldades por que passavam o país. Em seus escritos é expressivo um humanismo democrático e um humanismo socialista, que coincidem e dão as mãos em diversos de seus pensamentos políticos. Podemos verificar isso por ocasião do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), em que o ideário da democratização de oportunidades, mediante a expansão da educação na rede pública e gratuita para as classes menos favorecidas, o que rendeu a Anísio o título de 'comunista', apesar de não o ser. Segundo Vanilda Paiva, Anísio:

"Em 35 sai do governo e se exila na Bahia até 1946. Na ditadura Vargas ele ficou fora do governo. Para o governo que é semi-militar Anísio era um subversivo. Como muitos liberais eram. Em 64 ele volta a ser perseguido por ser liberal. Porque nesse período - final dos anos 40 até 64 - ele foi a principal figura educacional por ter ocupado postos centrais do Ministério da Educação. O INEP cuidava de tudo que dizia respeito à educação primária - da construção à pesquisa. Com a Capes ele interferia no ensino superior. Liberais e comunistas foram perseguidos. Anísio também foi fundador do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), a primeira instituição a ser fechada com o golpe militar. Roland Corbusier, Candido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto e, é claro, Hélio Jaguaribe. Anísio estava em toda essa movimentação, até contraditória, porque envolve católicos, liberais, comunistas, nacionalistas. Todos foram perseguidos pelo golpe."( Paiva apud LAGÔA, Ana. A Utopia da educação pública.)

Em seu livro Educação não é privilégio, Anísio concebia a:

"A escola pública universal e gratuita não é doutrina especificamente socialista, como não é socialista a doutrina dos sindicatos e do direito organizacional dos trabalhadores; antes são estes os pontos fundamentais por que se afirmou e possivelmente ainda se afirma a viabilidade do capitalismo ou o remédio e o freio para os desvios que o tornariam intolerável."(p.55)

Anísio não foi apenas um educador teórico, mas como administrador ocupou os cargos de Inspetor-Geral do Ensino da Secretaria do Interior, Justiça e Instrução Pública na Bahia (1924-1929); de Diretor Geral de Instrução Pública na cidade do Rio de Janeiro (1931); Secretário da Educação e Saúde em Salvador (1945-1950); Secretário de Educação e Saúde da Bahia (1947-1950); diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e da Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (1951 e 1964); e investiu ainda na criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) em 1955, na Universidade de Brasília - UnB (1960), tornando-se membro do Conselho Federal de Educação em 1962 e, posteriormente Reitor da UnB (1964). Anísio tinha como meta a reconstrução dos ideais de uma escola pública e gratuita nos diversos níveis. 
  

Anísio e seu pensamento

Anísio era um sonhador: pensava em educação como um processo capaz de restaurar e quebrar as diferenças tão impregnadas na sociedade de seu tempo e, envolvido no pragmatismo deweyano, achava que a escola poderia ser este instrumento de quebra.

Idealizava a educação e a escola em pelo menos cinco aspectos:

a) A educação é um direito

Anísio considerava a educação como um bem que não poderia ser negado, fazendo parte da formação do ser humano, de fato, um direito. Formula uma teoria democrática de educação comum, que seria pública e, em seu livro Educação é um direito, apresenta um plano para a estruturação e o financiamento dos sistemas estaduais de ensino, fundamentando-os em sua experiência quando Secretário de Educação e Saúde da Bahia.

b) A educação não é um privilégio

Para Anísio, a educação era dever e baseada numa consciência fundante:

" A consciência da necessidade da escola, tão difícil de criar em outras épocas, chegou-nos, assim, de imprevisto, total e sôfrega, a exigir, a impor a ampliação das facilidades escolares. Não podemos ludibriar essa consciência. O dever do governo - dever democrático, dever constitucional, dever imprescritível - é o de oferecer ao brasileiro uma escola primária capaz de lhe dar a formação fundamental indispensável ao seu trabalho comum, uma escola média capaz de atender à variedade de suas aptidões e das ocupações diversificadas de nível médio, e uma escola superior capaz de lhe dar a mais alta cultura e, ao mesmo tempo, a mais delicada especialização. Todos sabemos quanto estamos longe dessas metas, mas o desafio do desenvolvimento brasileiro é o de atingi-las, no mais curto prazo possível, sob pena de perecermos ao peso do nosso próprio progresso."(Teixeira, Anísio. Educação não é privilégio. op.cit, p.33). 

c) A educação de base deve ser geral e humanista

Para Anísio a educação envolvia a participação da sociedade e dos movimentos que nela ocorrem, daí a necessidade de ser geral. Em seu livro Educação no Brasil (1969), Anísio afirmava:

“.... a educação formal é parte do contexto cultural da sociedade, atuando como expressão de sua continuidade e desenvolvimento. Quando a sociedade, sempre de algum modo em mudança, ou evolução, sofre uma intensificação ou aceleramento desse processo, o fator de educação, refletindo a mudança, atua como força de resistência ou de renovação, concorrendo para dificultar ou facilitar o processo de readaptação social inerente à função característica da educação dentro do processo cultural.” 

d) A escola pública é a máquina que prepara a democracia

Referindo-se a escola pública, Anísio aponta-a como mecanismo necessário, porém reconhece os problemas existentes na máquina 'ideal' em vista do 'real':

"Proclamamos a compulsoriedade da escola. Deixamo-la a cargo dos Estados, o que foi sábio. Mas não a procuramos enraizar na comunidade local. Os municípios ficaram com uma competência supletiva. Pobres e sem recursos criaram uma escola marginal. E a situação, hoje, é a que se vê. Escolas estaduais administradas à distância, não de todo más, alienadas, porém, do espírito local e dependentes em tudo e por tudo do poder central do Estado. Enquanto as escolas eram poucas, o Estado ainda lhes dava a devida atenção. Com o crescimento do sistema escolar e a expansão das demais obrigações do Estado, vem-se tornando, cada vez mais difícil, ao Estado, administrar a sua escola. Ante o imediatismo de certas necessidades materiais do progresso geral de cada unidade, a escola vem sendo relegada no plano geral de govêrno e, por outro lado, o tipo de centralização administrativa excessivamente compacto estabelecido pelos governos estaduais impede a atenção individual às escolas, o que leva a administrá-las como se fôssem unidades de um exército uniforme e homogêneo, espalhado por todo o território" (TEIXEIRA, Anísio. O ensino cabe à sociedade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.31, n.74, 1959. p.290-298)

e) O professor tem de ser capacitado democraticamente

Anísio encarava a formação do docente e sua constante (re)capacitação como algo vital. Em reportagem afirmou:

 " O magistério constitui uma das profissões em que a formação nunca se encerra, devendo o professor, terminado o curso regular, continuar pela prática e tirocínio o seu desenvolvimento... Hoje, além dessa prática e dêsse tirocínio... procura-se dar ao professor estágios, cursos e seminários destinados a apressar e sistematizar as conquistas que sòmente uma muito longa prática, e aos mais capazes, poderia dar. É o chamado "training in service", educação no cargo em expansão em tôdas as profissões de natureza, simultâneamente científica e artística." (TEIXEIRA, Anísio. Curso, estágio e seminário para formação do professor. Entrevista. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 20 abr. 1958).

Estes eram alguns dos muitos ideais que tanto fizeram de Anísio um educador admirado e odiado por seus opositores, entre estes os defensores da escola particular e da educação religiosa. Anísio passa a ser um dos líderes intelectuais no movimento de luta em defesa da escola pública e laica e, com o início dos trabalhos para a elaboração da LDB, transforma-se no principal opositor de Dom Hélder e Carlos Lacerda, representantes da esfera católica privatista, que queriam entregar os recursos públicos às escolas privadas. Durante este período, Anísio Teixeira provocou, por sua atitude de defesa da escola pública, gratuita, universal e laica, uma campanha de oposição. VILLALOBOS (1969:84) retrata estes momentos entre a disputa ferrenha do laicismo contra a religiosidade, do público contra o particular, do renovador contra o conservador:

“O apelo de Gustavo Corção obteve pronta resposta. Em abril de 1958, manifestava-se a hierarquia católica, mediante dois documentos organizados por bispos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Em memorial endereçado ao presidente da República, o arcebispo D. Vicente Scherer e os bispos da Província Eclesiástica de Porto Alegre denunciavam Anísio Teixeira como representante, entre nós, do socialismo militante, por esperar da escola pública ou comum “tão ardentemente” por ele preconizada, “os mesmos resultados pré-revolucionários, previstos com ansiosa expectativa, pela doutrina socialista”. 

Acusado de socialista – “representante, entre nós, do socialismo militante” – o que na época significava incluí-lo entre aqueles que não eram bem vistos e, que de certa forma eram considerados pela sociedade brasileira – pelo menos no imaginário da época – uma ameaça aos padrões de moral, decência e bons costumes. Mas Anísio não se deixava abater pelas constantes injúrias e conflitos. Continuava a pregar a necessidade de uma escola única, pública.

Anísio Teixeira foi o representante de um movimento por meio da qual as lideranças políticas executivas procuraram estabelecer a ponte entre ciência e política. Segundo a professora Libânia Xavier em seu artigo intitulado “Reformar a escola, modernizar a cultura: Anísio Teixeira e a Educação Republicana”, 

[Abriu-se] espaço para a participação dos intelectuais na burocracia estatal, estabelecendo o comprometimento deles com as formulações da esfera política e, ao mesmo tempo, condicionando a legitimação da política à validação dos cientistas.

E nisto Anísio destaca-se, pois à frente da CAPES, deixou claro as deficiências verificadas nos diferentes níveis de ensino (primário, secundário geral e profissional, e superior), fazendo comparações com outros países, notadamente com os Estados Unidos, o que gerou afirmações de que era americanófilo. 

A importância de Anísio Teixeira na CAPES, foi bem retratada por CÓRDOVA (2000:32):

“Depoimentos de pessoas como o Dr. Almir de Castro indicam ter a CAPES se transformado num núcleo de pensamento e de formulação de projetos: por ela, e em torno de Anísio, circulavam as pessoas bem informadas e ela se constituiu numa espécie de "centro de formação" de gestores da política educacional, ainda que informalmente. Nela se pensou o Conselho Federal de Educação e sua composição final, nela se pensou o projeto da Universidade de Brasília, constando, inclusive, entre suas realizações, o auxílio para a realização de um seminário destinado a discutir esse projeto. À frente de tudo, sempre, duas figuras: Anísio Teixeira, a grande figura do conceitualizador, e associado a ele a imprescindível figura de Almir de Castro, o grande executivo. A continuidade da CAPES e de seus programas nesse período se deve a essa dupla, sempre habilidosa e inspirada, que procurou, conforme ainda o depoimento do Dr. Almir, cultivar "boas relações" e associar-se a "bons nomes". De um lado, eram ambos baianos e se relacionavam bem com os ministros que se sucederam, em bom número também baianos. Por outra parte, sabiam se articular politicamente, mantinham-se discretos, sem dar ao órgão peso econômico orçamentário muito grande, o que, confidenciou Dr. Almir, contribuía para "não despertar a cobiça dos políticos".

Mas o pensamento de Anísio Teixeira não permaneceu apenas na escola pública, foi mais à frente do seu tempo e incluiu também a Universidade. Neste campo havia concebido e gerado a Universidade do Distrito Federal (UDF) em 1935, que reunia os educadores mais brilhantes do Brasil, tais como: Afrânio Peixoto, Gilberto Freyre, Hermes Lima, Roquette Pinto e, que fora fechada durante o Estado Novo. Durante todo o período do governo de Getúlio Vargas como ditador, Anísio foi afastado da vida pública. Permaneceu assim até o final do período do Estado Novo(1937-1945), sendo que suas atividades permaneceram no campo da tradução de livros e correspondência com amigos e educadores.

Volta ao cenário educacional brasileiro em 1947, quando foi convidado pelo governador da Bahia, Otávio Mangabeira, para o cargo de Secretário de Educação e Saúde. Durante o período de 1947-1950, organizou os conselhos municipais de educação e fundou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, conhecido como Escola-Parque. Nela, procurava oferecer à criança uma educação ativa e integral, da alimentação até a preparação para o trabalho e a cidadania (bem próximo do contexto de Dewey/Kilpatrick). Este modelo inovador de escola foi considerado parâmetro internacional e divulgado pela Unesco em outros países.

Porém um grande sonho não seria esquecido e, retorna ao pensamento da educação superior: junta-se a Darcy Ribeiro e a outros intelectuais brasileiros e, no governo de Juscelino Kubitschek, criam uma Universidade modelo. RIBEIRO relembra este período:

Seguiram-se anos de trabalho alegre e fecundo, centrado principalmente no planejamento do sistema educacional que se iria implantar na nova capital – Escolas-parque e Escolas-classe. Inclusive e principalmente a criação da Universidade de Brasília, cuja concepção interessou vivamente a toda a inteligência brasileira, especialmente à comunidade científica. Anísio e eu discutíamos sem parar, quase sempre concordamos, mas às vezes discordávamos. Isto foi o que ocorreu, por exemplo, quando Anísio se fixou na idéia de que a UnB só devia ter cursos de pós-graduação. Afinal, concordou comigo e com o nosso grupo acadêmico, que era indispensável um corpo estudantil de base, sobre qual os sábios se exercessem, fecundamente, cultivando os mais talentosos para que eles próprios se multiplicassem. Mas a procupação de Anísio com a pós-graduação frutificou e foi na UnB, que se institucionalizou o 4º nível, como procedimento orgânico da universidade brasileira” (RIBEIRO, Darcy. A Invenção da Universidade de Brasília 1961-1995. Cartas: falas, reflexões, memórias. Brasília: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, 1995, p.35,36).

A UnB: modelo de vanguarda educacional

Desde a sua criação pela lei 3.998, de 15 de dezembro de 1961, a Universidade de Brasília tinha uma missão social muito forte, baseada nos princípios de gratuidade e igualdade. Estava na frente das expectativas educacionais e destacava-se como um modelo para as demais. Segundo CUNHA e GÓES:

"As novidades da Universidade de Brasília, de caráter estritamente organizacional e pedagógico, fizeram com que sobre ela recaíssem as iras dos reitores das universidades arcaicas, que se sentiam ameaçadas no conforto de seu poder pelos ventos da renovação que sopravam no ensino superior".(CUNHA, Luiz Antônio e GÓES, Moacyr de. O Golpe na Educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.81.)

Nas palavras do então Presidente da República, João Goulart, a UnB:

"Não se tratava apenas de acrescentar uma universidade mais às que já temos... O desafio... era o de conceber e planejar uma universidade modelada em bases novas que, para tôdas as demais, constituísse um estímulo e complemento... Planejada à luz da experiência nacional e internacional. Destinada a cumprir funções específicas de assessoramento aos poderes públicos em todos os campos de saber". (PLANO ORIENTADOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA,1962)

A Universidade de Brasília foi pensada

“(...) desde o seu primeiro momento, como um órgão de assessoramento público revestido de duas características fundamentais. Por um lado, a alta qualificação científica e, por outro lado, a completa liberdade docente e a perfeita autonomia acadêmica. Ela não poderia, por isto, ter nenhuma hierarquização interna que não fosse a dos títulos e graus acadêmicos, nem sofrer qualquer sujeição externa que coagisse seu auto-governo. Este é um imperativo inelutável para a universidade, porque, por mais sábios que sejam os seus sábios, se estes sábios tiverem uma corrente amarrada nos pés, se estes sábios estiverem com medo, mal servirão como professores, mal servirão absolutamente como assessores livre, e menos ainda para o exercício da função crucial de consciência crítica da Nação” (RIBEIRO, Darcy. A Invenção da Universidade de Brasília 1961-1995. op. cit., p.146 )

Isto estava bem dentro dos princípios tão proclamados por Anísio Teixeira e outros na visão de “liberdade”. Em seu livro A Educação e a Crise Brasileira(1956), Anísio defende a Universidade e a liberdade que esta deve ter. Ao recapitular a tradição de liberdade e razão da Grécia em seu período clássico , Anísio proclama:

“Somente quando as instituições do saber estão com a sua independência salvaguardada e a livre circulação desse saber assegura a conduta deliberada e refletida dos homens e a crítica e revisão constante de suas leis e instituições, é que teremos um regime de liberdade, como a concebeu a inteligência humana naquele minuto de esplendor em que teve, na Grécia, a revelação do seu poder não só de contemplar o mundo, mas de transformá-lo...” (p.263)

“ E que as universidades não serão o que devem ser se não cultivarem a consciência da independência do saber e se não souberem que a supremacia do saber, graças a essa independência, é levar a um novo saber. E para isto precisam de viver em uma atmosfera de autonomia e estímulos vigorosos de experimentação, ensaio e renovação. Não é por simples acidente que as universidades se constituem em comunidades de mestres e discípulos, casando a experiência de uns com o ardor e a mocidade dos outros.”(p.271)

Em vista deste apego aos princípios escolanovistas, não se poderia escolher administradores melhores do que os próprios idealizadores e, assim se dá: o Reitor escolhido para a Universidade de Brasília, foi o professor Darcy Ribeiro que assume em 5 de Janeiro de 1962, contando com um quadro capacitado e com uma extrema visão do papel que a Universidade de Brasília deveria ter. Entre estes estavam: Anísio Teixeira(Conselho Federal de Educação), Hermes Lima(Conselho Federal de Educação), Abgar Renault(Conselho Federal de Educação), Oswaldo Trigueiro(Ministro do STE), Frei Mateus Rocha(Provincial da Ordem Dominiciana no Brasil), Alcides da Rocha Miranda(Presidente da Fundação Cultural de Brasília) e João Moojen de Oliveira(Secretário de Agricultura do DF), que passaram a compor o Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília(FUB).

O professor Darcy Ribeiro afasta-se em 19 de setembro de 1962, assumindo Frei Mateus Rocha até 24 de Janeiro de 1963, quando o professor Darcy retorna ao cargo, que deixaria novamente em 19 de junho de 1963. Nestes períodos Darcy assumiu o cargo de Ministro da Educação, e depois, de Chefe da Casa Civil da Presidência.

Anísio Teixeira assume a Presidência do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília, sendo o 4º reitor da UnB, cargo que ocuparia até 13 de abril de 1964, quando todos os membros do Conselho Diretor são exonerados pelo governo provisório dos golpistas militares. Para Vice-Reitor é indicado o professor Edgar Albuquerque Graeff. Posteriormente assume este cargo o professor Dr. Almir Godofredo de Almeida e Castro que anteriormente tinha trabalhando no INEP.

Anísio, a UnB e o Golpe Militar

Ao assumir o cargo, Anísio deixa claro o seu papel e suas pretensões à frente da UnB:

"- Estou plenamente identificado com a idéia, com o plano e com o período de realização em que a Universidade de Brasília já se acha. Começamos o nosso trabalho com o sentimento de que o Professor Darcy Ribeiro é um homem absolutamente insubstituível na Reitoria da Universidade de Brasília. O que pretendemos fazer é não diminuir a sua obra criadora, mas ajudá-la, no período em que aqui permanecemos.... Desejo que êsse meu período de administração não seja uma pausa, mas uma contribuição de continuidade a obra de Darcy Ribeiro.... Meu esquema de trabalho, falando de modo geral (pois ainda terei um encontro com os professôres, daqui a instantes, quando ventilaremos os assuntos de imediato interêsse), poderia ser englobado no seguinte:

  1.  A construção da Universidade. Que essa construção continue em sua marcha acelerada, e que o ano de 1964 já nos encontre com um proveitoso progresso, inclusive no que se refere à urbanização de tôda a área da Cidade Universitária, do "campus", como dizemos aqui:

  2. Estabelecer um profundo entrosamento com o campo da administração pròpriamente dita, hoje entregue ao dedicado Doutor Bichat Rodrigues:

  3. Acelerar a dinamização da atividade acadêmica". (TEIXEIRA, Anísio. Fazer de Brasília um modêlo para a educação no País. Entrevista. Correio Braziliense. Brasília, 21 jun. 1963)

  4. Anísio reconhecia as dificuldades que enfrentaria, não só devido a sua formação e princípios, mas às próprias condições da época:

"Mas, ao mesmo tempo, no que se refere ao assunto que nos interessa no momento, o sistema escolar, por exemplo, pode ser implantado com inovações muito dificilmente realizáveis em outros centros urbanos, onde certos conceitos já estão cristalizados, onde muitas vêzes a mentalidade reinante é impermeável às inovações". (TEIXEIRA, Anísio. Fazer de Brasília um modêlo para a educação no País. Op.cit.)

À frente da UnB, não deixou que 'a mentalidade reinante' deixasse esfriar seu ânimo e vigor em busca de uma educação mais igualitária, gratuita e laica. Passou a por em prática a proclamação que fizera em janeiro de 1963, quando apontava aquele ano como o 'Ano da Educação':

" O programa que... esboçou o Presidente conta com recursos - primeiro sinal de sua seriedade - e obedece a um planejamento e a certa sistematização. Não vai realizá-lo só o govêrno federal, mas todos os governos estaduais e todos os municipais...E a grande operação não é da simples expansão das escolas, mas a do seu aperfeiçoamento e de sua expansão, após melhorar-lhe a qualidade.... Dos muitos aspectos do nôvo plano nacional de educação, quero assim, acima de todos, sublinhar êste. O plano trienal para que nos convocou o Presidente da República não é, pois, mais uma panacéia educacional, mas o esfôrço total da nação para implantar um sistema educacional que nos emancipe e forme o nacional como se formaria o imigrante de que antes podíamos depender. A escola brasileira terá de ser uma escola que em nada se envergonhe das escolas dos países desenvolvidos. É assim que a queremos - nós, das classes privilegiadas - para os nossos filhos. É assim que a devemos desejar para o povo brasileiro" (TEIXEIRA, Anísio. 1963: ano da educação. Boletim Informativo CAPES. Rio de Janeiro, n.122, jan. 1963. p.1-2)

E assim também foi sonhada a UnB: como cultivadora de talentos, inovadora em seus aspectos acadêmicos e pedagógicos, moderna em suas concepções e, acima de tudo, composta por educadores que incentivavam um espírito crítico, aliás marca deste período.

Mesmo com vistas a promissores dias para a educação, as transformações econômicas, sociais e políticas instáveis levaram a uma mudança drástica. Na visão de Roberto Campos, o Golpe Militar de 1964 foi resultado de

“(...) uma crise sistêmica. Uma perda de eficiência e um colapso da disciplina, seja sindical, seja militar. Marchávamos para uma situação caótica...” (Campos apud COUTO, Ronaldo Costa. Memória Viva do Regime Militar Brasil 1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.35)

Por que tornaram-se tão difíceis aqueles dias? Esta é uma questão que muitos historiadores fazem-se. Para muitos seriam piores do que a Ditadura do Estado Novo. Na concepção de Buffa e Nosella:

"A repressão de 1964, diferentemente da de 1935-37, surpreende os educadores no momento em que seu debate teórico-crítico e revolucionário ampliara-se enormemente". (BUFFA, Ester e NOSELLA, Paolo. A Educação Negada: Introdução ao Estudo da Educação Brasileira Contemporânea. São Paulo: Cortez Editora, 1991, p.120)

Fica evidente a posição de seus idealizadores, incluindo Anísio Teixeira que não se dobraria aos ditames militares. Nas palavras de RIBEIRO:

“É explicável, por conseguinte, a animosidade que provocamos. Aquela universidade, nascida do otimismo da era de Juscelino, do reformismo da era Jango e do utopismo dos melhores cientistas brasileiros – que podendo antever o Brasil que pode ser, desesperam-se com o Brasil que é – não era compatível com nenhuma ordem ditatorial de objetivos antinacionais e antipopulares. A verdade inteira é que a UnB não era domesticável por nenhum sistema regressivo e repressivo. O contexto político que corresponde a ela, como atmosfera em que pode respirar e viver é o da democracia. Isto porque só em liberdade ela poderia e poderá devotar-se ao povo brasileiro com a capacidade de serví-lo não no que ele é – ou fizeram dele -, mas no que há de ser, por sua própria vontade e esforço”.( RIBEIRO, Darcy. A Invenção da Universidade de Brasília 1961-1995. op. cit., p.147)

Em 9 de Abril de 1964 o Comando Supremo da Revolução baixa o Ato Institucional nº 1, que concentra poderes no governo(exclusivo poder de decretar estado de sítio e de apresentar emendas), impõe punições a civis(suspensão de poderes políticos por dez anos e cassar mandatos de parlamentares, bem como suspendendo por seis meses as garantias constitucionais de estabilidade dos servidores públicos) e militares que considere subversivos. De posse deste ‘ato jurídico legal’ invadem, com suas forças militares as instalações da Universidade de Brasília no mesmo dia. Nenhuma pessoa pôde entrar ou sair das dependências da Universidade, sendo professores presos. Nas recordações do professor Darcy Ribeiro claro sofrimento por que passaram estes professores e funcionários:

“Quando, amanhã, o Brasil – e dentro dele a Universidade de Brasília – conquistar a alforria para retomar o comando de seus próprios destinos, precisaremos recordar estes dias trágicos da travessia do túnel da iniqüidade. Entre eles, principalmente, o da invasão de 1964, em que, depois de assaltada por tropas motorizadas, a UnB teve diversos professores presos levados a um pátio militar para serem ali desnudados e assim humilhados por toda uma tarde. Este quadro de um magote de professores gordos e magros, velhuscos, uns secos de carnes, outros barrigudos, esquálidos, dois deles enfermos, todos nus num pátio policial não deve ser esquecido jamais: é o dia da vergonha.” (RIBEIRO, Darcy. A Invenção da Universidade de Brasília 1961-1995. op. cit., p.148)

Em 13 de abril de 1964 Anísio, bem como todos os membros do Conselho Diretor, são exonerados e é nomeado para o cargo o reitor pró-tempore Zeferino Vaz. Segundo a ata da 22ª Reunião do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília, na qual foi eleito o Presidente do Conselho Diretor e Reitor da UnB, em 04.06.1964, por ordem do Ministro da Educação e Cultura o senhor Ministro Doutor Flávio Suplicy de Lacerda, fica evidente a tentativa de validar o ato golpista que afastava Anísio Teixeira e o Conselho Diretor legítimo:

“(...) o Senhor Ministro da Educação tomou a palavra, congratulando-se com os presentes e com a Universidade, pelo auspicioso acontecimento que vinha trazer para essa Entidade, na qualidade de membros do Conselho Diretor, a colaboração de eminentes homens públicos, não só aos problemas da educação superior, como longamente experimentados em diferentes e relevantes setores da vida pública cultural da nação. Notadamente, referiu-se ao Senhor Reitor “pró-tempore”, nome de alta projeção nos meios científicos nacionais e internacionais, o qual vinha prestando relevantes serviços à Universidade, na fase transitória de intervenção levada à efeito na Instituição, em decorrência do Movimento Revolucionário de trinta e hum de março (....) Em seguida, o reitor “pró-tempore” professor Doutor Zeferino Vaz, agradeceu as palavras do Senhor Ministro e manifestou a sua convicção de que a Fundação Universidade de Brasília, orientada por aquêle Conselho, constituído de legítimos representantes da cultura brasileira, todos eles padrões de dignidade, lograria atingir, em tôda a plenitude, os objetivos par que foi criada a Universidade, salientou, outrossim, que tendo tomado desde logo as providências indispensáveis para repôr no seu normal funcionamento a Universidade de Brasília esta já se achava de nôvo em condições de cumprir os seus altos destinos culturais e ser, efetivamente, a universidade modêlo do país.” (21ª a 27ª Atas do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília 1964).

Algumas Considerações

No curto período em que Anísio Teixeira comandou efetivamente a Universidade de Brasília(UnB), podemos ver estampado o sonho de uma universidade que poderia dar educação, de fato, a todas às classes, independente de seu 'status' social.

Manteve-se numa linha de atuação progressista, mas sem nunca perder de vista os ideais que tanto fizeram de sua vida uma ligação permanente com a educação: os ideais do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Estava atento às modificações por que passavam a sociedade de seu tempo e, queria uma universidade que também estivesse.

Quer à frente do INEP, quer no Conselho Federal de Educação, bem como na Universidade de Brasília, Anísio não era domesticável, mas atuante. Sonhou e concretizou uma universidade sólida e representante de valores sociais ligados à gratuidade e ao laicismo na educação. Quando a universidade viu-se submetida, não submeteu-se, o que lhe constou sua estabilidade e posição. Quando a universidade foi silenciada, não calou-se, mas continuou a ‘gritar’ sua posição e princípios por meio de seus escritos.

Quando os militares, que se consideravam os donos do poder (e naquele momento estavam realmente sendo) conceberam uma universidade servil, podemos imaginar a rejeição de todos àqueles que tinham os mesmos ideais de Anísio e Darcy: estes tinham gerado uma idéia e, esta idéia era agora uma realidade – a UnB não aceitaria ser castrada.

“Frente à altivez do professorado da UnB, só restou ao deseducador com méritos de aio doméstico, recrutado pela ditadura para liquidar a Universidade de Brasília, pôr-se a procurar não quadros de reposição, que não existiam, mas quem se animasse a simular competências mínimas para continuar ditando os cursos interrompidos, diante de estudantes perplexos. A história posterior é o do passo da claudicação acadêmica à repressão policial que submeteu a UnB ao regime castrense que ela sofre até agora”. (RIBEIRO, Darcy. A Invenção da Universidade de Brasília 1961-1995. op. cit., p.148)

Esta visão, transmitida como de ‘pai para filho’ – de Anísio Teixeira e outros para professores e alunos da UnB – ficou evidente quando da destituição de 15 professores, em 1965, que segundo RIBEIRO(1995) ficou conhecido como “o episódio histórico: é o dia da diáspora ...dia em que 210 professores deixaram a Universidade de Brasília, a cidade, e a maioria deles o País”. (RIBEIRO, Darcy. A Invenção da Universidade de Brasília 1961-1995. op. cit., p.148).

Anísio foi silenciado em 11 de março de 1971, mas seus escritos continuam a “falar” a todos os que mantem o sonho de uma escola pública e gratuita.

Político com certeza, filósofo da educação sem dúvida, visionário talvez, mas brilhante e equilibrado seriam os mais apropriados dos muitos adjetivos que poderiam ser atribuídos a este educador, mas o que mais representa Anísio Teixeira seria o de sonhador. Nas palavras de Delgado de Carvalho:

“Quando penso na obra de Anísio Teixeira convenço-me cada vez mais de que não é nos congressos de centenas de delegados, nem nos conselhos de dezenas de membros, nem mesmo nas comissões de três ou quatro técnicos que são delineados os grandes planos. É nas discussões em que o ascendente espiritual de um só, ouvindo e escolhendo as opiniões autorizadas, determinam as medidas decisivas. Não sei onde li, certa vez, um conceito de Emerson que dizia: ‘Uma grande instituição não é, na realidade, senão a sombra prolongada de um homem’. Ora, a Secretaria da Educação do Distrito Federal com o seu Instituto de Educação e Escola de Professores, com o seu Instituto de Pesquisas Educacionais, com sua Universidade do Distrito Federal e outros departamentos, é uma grande instituição que ficará, na história da educação brasileira, como a sombra prolongada de Anísio Teixeira.” (CARVALHO, Delgado de. Anísio, Vulcão de Idéias. In: Anísio Teixeira: Pensamento e Ação. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1960, p.227)

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© José Luis Gómez-Martínez
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